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A sociedade quer mesmo “desconstitucionalizar” a previdência?

Vinícius Pacheco Fluminhan

A Constituição de 1988 fortaleceu a cidadania e consolidou os anseios de uma sociedade menos injusta e menos desigual. Cientes do status diferenciado das normas constitucionais e receosos de que nossas esperanças não se transformassem em realidade, optamos naquela ocasião por colocar uma grande quantidade das reivindicações populares no corpo da Constituição, tornando-a até hoje, não por acaso, a mais longa de toda a nossa história.

Um dos pontos polêmicos da reforma previdenciária é a retirada quase completa das normas de natureza previdenciária do corpo da Constituição. O argumento principal da PEC 6/2019 consiste na necessidade de desburocratização de algumas matérias que costumam emperrar o processo legislativo. De fato, nem sempre é fácil obter consenso na aprovação de algumas matérias. Neste sentido, a despeito de vivermos num regime democrático, o tempo para maturação de uma proposta pode tornar-se um inimigo do governo, especialmente quando a habilidade de articulação política não é a maior virtude de quem exerce o poder.

Por outro lado, as normas constitucionais possuem dois aspectos muito marcantes: são proeminentes e perenes. Com efeito, elas têm posição hierárquica superior em relação às demais, o que obriga estas últimas a respeitarem os princípios e os valores daquelas. Por outro lado, a vigência duradoura do texto constitucional decorre do próprio processo de emendas, caracterizado por procedimentos solenes que exigem amplo consenso de deputados e senadores. Em função dessas características, a nossa cultura jurídica identifica nas normas constitucionais valores como estabilidadegarantia e confiança. Em suma, sentimos mais segurança quando uma regra está escrita na Constituição.

Então fica a dúvida: por que “desconstitucionalizar” regras importantes do Direito Previdenciário? Qual o sentido desta medida se história já nos provou o quanto é importante a presença de regras previdenciárias na Constituição.

Colocamos no plano constitucional, por exemplo, a garantia de correção monetária dos salários utilizados no cálculo de aposentadorias porque, acredite-se ou não, já tivemos na legislação infraconstitucional normas estabelecendo que este cálculo se faria sem a atualização monetária dos últimos 12 salários do trabalhador. Mesmo em períodos de inflação! A propósito, foi a presença desta garantia na Constituição que inibiu uma tentativa legislativa de correção parcial dos salários no cálculo de aposentadorias entre os anos de 1994 a 1997, numa manobra que afetava o índice de reajuste do salário mínimo (IRSM). A “salvação” foi constitucional.

Por conta de abusos no passado, colocamos também na Constituição a garantia de reajustes periódicos para a preservação do valor real dos benefícios. Por mais absurdo que possa parecer, o reajuste já ficou aquém da inflação por diversas vezes, sempre com base em normas infraconstitucionais, em especial nos anos de 1997, 1999, 2000 e 2001, no famoso caso envolvendo o reajuste pelo IGP-M. O prejuízo causado aos aposentados e pensionistas foi minimizado pelo STF, que diante da polêmica esclareceu ser assunto de competência do Legislativo e do Executivo. Não obstante, a Corte Maior deixou registrado que a utilização do INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor) seria um caminho possível para se respeitar doravante a garantia de preservação do valor real dos benefícios. Não por acaso, é esta a diretriz da Lei 8.213/91 até hoje. Novamente, graças à Constituição.

A Constituição também garante que as contribuições previdenciárias tenham reflexos no valor dos benefícios. Com base nesta regra, muitos aposentados recorreram ao Poder Judiciário na última década pleiteando a “desaposentação” para a revisão de proventos, alegando terem sido prejudicados tanto pela extinção do Pecúlio, em 1994, quanto pela criação do Fator Previdenciário em 1999. Como é sabido, o STF não acolheu a pretendida revisão, mas tudo indica que foi justamente a possibilidade de derrota na Corte Maior, que, um ano antes do julgamento ser encerrado, levou o Governo a criar a denominada “Fórmula 85/95” a fim de minimizar os danos aos futuros aposentados. Mais uma vez, ressalte-se, por causa da Constituição…

Esses episódios demonstram que as normas constitucionais funcionam como uma barreira para impedir tentativas oportunistas – e quase sempre irrefletidas – de eliminação ou redução dos direitos previdenciários através de leis infraconstitucionais. Estas não exigem maioria qualificada para aprovação e, consequentemente, não pressupõem ampla discussão no âmbito do Legislativo.

Por isso, são de aprovação mais rápida e às vezes sem a maturação necessária que um tema importante requer dos legisladores.

Os três exemplos relatados acima são apenas alguns dos muitos que chegaram aos Tribunais desde 1988 e que são solucionados por uma questão de hierarquia normativa, ou seja, porque foram leis que desrespeitavam uma norma superior (no caso, a Constituição). Por isso, em matéria previdenciária a nossa história é clara: não é possível confiar sempre na estabilidade e na idoneidade das leis. Daí a pergunta: a sociedade está realmente disposta a retirar da Constituição as poucas garantidas que temos em matéria previdenciária?

Vinícius Pacheco Fluminhan – Formado em Direito, Especialização em Direito Previdenciário, em Direito e Processo do Trabalho e Mestrado em Direito. Atualmente é Professor do Curso de Graduação em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie Campinas.

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